Já pensou como seria estudar em Hogwarts com Harry, Rony e Hermione? Lutar ao lado dos Vingadores ou até mesmo namorar seu cantor favorito? Isso é possível – ou quase – graças às fanfics. Como o próprio nome diz, as fanfics, também conhecidas como fanfictions, são ficções escritas por fãs que “pegam emprestado” universos, personagens ou celebridades para construir tramas completamente novas.
Site de fanfics “Fanfic Obsession” (Foto: Mariana Rodrigues)
Essas histórias podem ser sobre os mais diversos assuntos, desde romances, aventuras, mistérios e até terror. Tudo o que você precisa é um pouco de criatividade – algo que, muitas vezes, os fãs têm de sobra. Esse é o caso da auxiliar administrativa Jácia Marcelle, de 22 anos. Durante meses, ela se dedicou completamente a escrever uma fanfic sobre Harry Styles e Louis Tomlinson, ex-integrantes da boyband One Direction.
“Entrei no mundo da fic com 11 ou 12 anos. Sempre me sentia à vontade de ler e consumir esse conteúdo porque é muito rico, de graça e com muita facilidade de acesso.” E ela não é a única. Desde o início da internet, milhares de jovens ao redor do mundo começaram a compartilhar histórias com outros fãs e alcançaram um público que vai além dos limites territoriais, tudo de forma gratuita.
Mas engana-se quem pensa que essas histórias só surgiram com a internet, pois, na verdade, essa ferramenta apenas impulsionou a produção e divulgação das obras. As primeiras fanfics são datadas do século XIX, com protagonistas de famosas histórias como “Orgulho e Preconceito” (1813), de Jane Austen, e “Sherlock Holmes” (1887), de Arthur Conan Goyle. No entanto, foi no século XX que elas ganharam força com as séries televisivas de ficção científica.
Com programas como “Star Trek” (1966) na TV, tramas sci-fi (ficção científica) tornaram-se mais acessíveis, reunindo um grande grupo de fãs, posteriormente chamado de fandom. Eles se juntavam para compartilhar teorias, ilustrações e, claro, fanfics! As primeiras histórias no formato mais parecido ao que conhecemos hoje eram divulgadas em revistas produzidas pelos próprios fãs, chamadas de fanzines ou apenas zines.
Cena de “Orgulho e Preconceito” (Foto: Divulgação/Universal Studios)
Até hoje “Orgulho e Preconceito” é um verdadeiro sucesso e, desde a época de publicação, em 1813, os fãs da obra criavam conteúdo além das histórias de Jane Austen. A própria sobrinha da autora se arriscou a escrever uma carta para Georgiana Darcy, irmã de Fitzwilliam Darcy, protagonista do romance.
Detetive Sherlock (Foto: Sammy Williams/Pixabay)
J. M. Barrie, autor de sucessos como “Peter Pan nos Jardins de Kensington” (1906), também se aventurou pelas histórias do detetive mais famoso do mundo. Em 1893, o escritor criou uma história sobre Sherlock Holmes e Dr. Watson, personagens de Conan Doyle.
História escrita à mão (Foto: Debby Hudson/Unsplash)
Sherlock Holmes foi o protagonista da primeira fanfic, feita pelo ator norte-americano William Gillette. Após escrever uma peça sobre o detetive, entrou em contato com Conan Doyle para pedir permissão para casar o personagem e teve como resposta: “Você pode casá-lo ou matá-lo, ou fazer o que quiser com ele.”
Cena de “Star Trek” (Foto: Divulgação/NBC)
A série que teria inicialmente apenas três temporadas se tornou um fenômeno e começou a reunir fãs por toda parte. Apenas os episódios não eram suficientes para o público, que discutia, analisava, fazia teorias e criava conteúdo sobre o assunto. Eles começaram a publicar zines – revistas contendo artigos, ensaios, editorais, fan arts e, principalmente, fanfics.
Kirk e Spock em “Star Trek” (Foto: Divulgação/NBC)
Muitas fanfics são conhecidas pela grande quantidade de conteúdo erótico, porém engana-se quem pensa que essa é uma temática recente. "A Fragment Out of Time", publicada em 1974, foi fundadora do slash fanfiction – subgênero de fanfics que narra relações sexuais entre personagens do mesmo sexo. A história apresentava uma cena de amor entre Kirk e Spock, personagens de “Star Trek”, e foi fundamental para o gênero, não apenas por apresentar conteúdo sexual, mas por trazer a principal intenção das fanfics, que é rompimento de barreira e a quebra de regras.
Elenco “Buffy, a Caça-Vampiros”, série dos anos 1990 que teve grande público feminino (Foto: Divulgação)
No início, as zines eram dominadas por homens. Conforme as histórias de ficção científica foram se popularizando e aparecendo em outros lugares além dos livros, as mulheres começaram a ser parte ativa dos fandoms. Então criou-se uma divisão entre os fãs literários – predominantemente masculinos – e os fãs de mídia, dos quais quase 90% eram mulheres.
Histórias passaram para o formato digital (Foto: Kaitlyn Baker/Unsplash)
Com a popularização da internet na década de 1990, as fanfics migraram das zines para os sites e blogs. Agora não era mais necessário sair de casa e nem dar o endereço para receber as histórias, pois elas poderiam ser lidas no computador. Isso também mudou a forma de produzir fanfics: o anonimato deu coragem para novos autores se arriscarem nesse universo e, assim, a quantidade de fandoms de séries geek – como “Arquivo X” (1993) e “Buffy, a Caça-Vampiros” (1997) – aumentou. Foi nessa época que surgiu um dos maiores sites de fanfics do mundo, o FanFiction.net, fundado em 1998, que conta com mais de 12 milhões de usuários em mais 40 línguas.
Cena de “Crepúsculo” (Foto: Divulgação/Summit Entertainment)
Após sonhar com a história de uma garota que se apaixona por um vampiro, Stephenie Meyer colocou as ideias no papel e criou o que seria um dos maiores livros adolescentes do Século XXI. A saga “Crepúsculo” (2005) logo ganhou uma legião de fãs ao redor do mundo, os quais devoraram as obras da autora e, posteriormente, se aventuraram em suas próprias tramas. Muitas escritoras começaram escrevendo fanfics de “Crepúsculo”, como E. L. James, autora de “50 Tons de Cinza” (2012), história baseada na relação dos protagonistas de Meyer. O livro com cenas eróticas foi um sucesso entre o público jovem-adulto e, em 2015, virou uma franquia de filmes, protagonizados por Dakota Johnson e Jamie Dornan.
Cena de “After” (Foto: Divulgação/Diamond Films)
Os anos 2000 trouxeram de volta a moda das boy bands e popularizaram sucessos como One Direction. Grande fã do grupo, Anna Todd resolveu transformar o amor em palavras ao criar “After” (2004), uma fanfic envolvendo Harry Styles, integrante da banda. Publicada em 2013, a história logo viralizou no Wattpad, ganhando sequências que também foram transformadas em livros físicos. Em 2019, o primeiro filme da série “After” estreou nos cinemas, com Josephine Langford e Hero Fiennes Tiffin como protagonistas.
AU “Wild Thoughts” (Foto: Reprodução/Twitter)
Com a popularização das redes sociais, novos estilos de fanfics surgiram e essas histórias também começaram a migrar para outras plataformas, como o Twitter. As chamadas AU (sigla para “Universo Alternativo”, em inglês) são tramas que colocam os personagens em um universo diferente e simulam publicações em redes sociais como Instagram, Twitter, Snapchat, WhatsApp para descrever a história. Os capítulos muitas vezes são publicados em formato de thread alternando entre prints de redes sociais e textos corrido.
“POV” da Nonô Franco com Tom Holland (Foto: Reprodução/TikTok)
A fanfic migrou do papel para sites e blogs e, agora, chegou em formato de vídeo. O app TikTok popularizou uma nova forma de contar histórias, os POVs (sigla para “point of view” ou “ponto de vista”, em português). São vídeos de no máximo um minuto em que os fãs editam cenas de filmes e séries para criar uma trama onde interagem com seus personagens favoritos.
Informações extraídas de “Fic: Por que a fanfiction está dominando o mundo” de Anne Jamison
No início dos anos 2000, histórias como “Harry Potter” e “Crepúsculo” começaram a ganhar força e conquistar fãs que queriam ir além dos livros e imaginar finais alternativos para personagens queridos. Foi assim que muitos iniciaram no mundo das fanfics. “No Orkut tinha comunidades de fanfics de Crepúsculo. A primeira que escrevi também foi de Crepúsculo”, como exemplificou Mariana Baciquetto, de 23 anos.
Ela embarcou nesse universo com 11 anos e começou a se aventurar pelas histórias, pois queria ser escritora. “Quando entrei para o Orkut, pensei ‘Cara, posso fazer isso, será que as pessoas vão se interessar?’ E na hora você recebia o feedback e, como já queria ser escritora, sabia se essa cena tava legal ou se não estava”, explica.
Esse foi só o começo. Depois disso, escreveu 24 fanfics, a maioria focada em romance, sobre “The Vampire Diares” (2009), “Crepúsculo” e One Direction. Assim como ela, outros jovens ao redor do mundo encontraram nessas histórias uma forma de se expressar, compartilhar sonhos, desejos, fazer amigos e o mais importante: se sentir parte de um grupo.
Não à toa surgiram diversos sites e comunidades em redes sociais voltadas a isso. O que começou nos anos 1960, por meio de revistas, muitas vezes feitas à mão, ganhou uma proporção mundial através da internet. O site de fanfics interativas Fanfic Obssession surgiu em 2009 e, atualmente, conta com mais de 10 mil histórias publicadas, de acordo com o levantamento de 2018 feito pela plataforma.
Além dele, Spirit Fanfiction, Archive of Our Own e Wattpad reúnem milhares de fanfics de todas as partes do planeta, nas mais diversas línguas. São histórias escritas por jovens de todas as idades, gêneros, nacionalidades e de diferentes fandoms que encontraram na escrita algo além de apenas um hobby. “Era muito bom porque você se sentia parte daquele universo”, relembra Mariana.
Apesar de ser uma comunidade inclusiva, não há como negar a predominância do público feminino, seja como autores ou apenas leitores. Muitas vezes, as fanfics são porta de entrada para meninas que querem se tornar escritoras, como Mariana, ou apenas uma forma de incentivo para colocar as ideias no papel, como Jácia.
Independente da motivação, essas pessoas são extremamente dedicadas para criar um conteúdo de qualidade de forma totalmente gratuita. Mas você já parou para pensar como funciona o processo criativo para transformar um sonho em uma publicação de sucesso – que às vezes pode até se tornar um livro original e até mesmo um filme? E quem são essas mulheres que escrevem fanfics?